Depoimento de Maria Lucimar Gonçalves Silva

Depoimento de Maria Lucimar Gonçalves Silva – Esposa de paciente com ELA.

Meu marido se comunica comigo só pelos olhos

Abel tem uma doença incurável que paralisou seu corpo, mas não seus pensamentos.

Cada linha da carta abaixo tomou cinco minutos do meu marido. Ele não escreve, não fala nem demonstra por gestos o que sente. Comunicamo-nos pelo movimento dos olhos dele. Meu marido é portador de esclerose lateral amiotrófica, doença que atinge os músculos e os paralisa para sempre.

Abel tem essa doença há 12 anos. Ele era taxista e dirigia quando começou a sentir cãibras na perna e no braço esquerdo. Em semanas, o mal-estar se estendeu para o corpo inteiro e o impediu de trabalhar.

No início, achei que fosse um problema na coluna. Fizemos diversos exames, mas os ossos estavam em perfeito estado. O diagnóstico só veio dois anos depois. Abel não andava mais e ficava mais tempo no hospital do que na nossa casa.

Eu estava no corredor do hospital quando o médico me explicou que essa doença não tinha cura. Entrei em desespero. Mas confiei na capacidade do Abel de não entregar os pontos e nem deixar nosso amor morrer.

Conheci meu marido sete anos antes do diagnóstico, no Maranhão, onde eu morava. Foi paixão à primeira vista. Ele era o típico romântico. Antes de sair para o trabalho, me enchia de beijos. À noite, perguntava como tinha sido o meu dia. Se eu estivesse triste, bastava ele me chamar de gatinha para melhorar meu humor.

Por isso, os primeiros anos de doença foram traumáticos. Depois de parar de andar, Abel perdeu a capacidade de digerir a comida. Em um mês, emagreceu 20 kg e não ia mais sozinho ao banheiro. A cada perda dele, nosso sofrimento aumentava.

Usamos uma tabela com letras e números

Após cinco anos de doença, meu marido parou de falar. Os médicos alertaram que isso aconteceria um dia. Por isso, ele decidiu aprender a se comunicar por uma tabela indicada pela associação de portadores dessa doença. Abel mandou pregar a tabela na parede e disse que só falaria conosco por meio dela dali em diante. Ela mistura letras, números e sinais, como os acentos circunflexo e agudo.

Pelo método, quando ele quer dizer algo, aponto uma caneta para a primeira linha da tabela. Se a letra da palavra que ele deseja falar não está nessa linha, ele fica imóvel e passo a caneta para baixo até a linha correta. Quando isso acontece, ele pisca. Aí, arrasto a caneta nessa linha até descobrir a letra certa. Sei qual é porque ele pisca de novo.

Anoto as palavras em um caderno que registra o cotidiano dele. Às vezes, é possível decifrar o que ele quer com apenas uma letra. Ao passar a caneta sobre a letra Q, pergunto se ele quer dizer a palavra "quando", por exemplo. Se sim, ele pisca. Abel entende o que falam com ele pois não perdeu a inteligência.

Pela tabela, sei quando ele quer trocar o canal da televisão, comer, ir ao banheiro ou descansar comigo. No início, eu e nossa filha Cristiane fazíamos a leitura. Hoje trabalho para pagar as contas da casa e nossa filha se casou. Contratei um rapaz que fica o dia inteiro com o Abel e informa os desejos dele pra mim.

Através das cartas, Abel diz que me ama

Há três meses, meu marido teve uma crise de pneumonia e foi internado. No hospital, Abel me escreveu uma carta dizendo que eu podia ficar tranquila porque ele não me abandonaria tão cedo, graças ao meu carinho com ele. Abel também disse que me ama. Chorei de emoção. São palavras como essas que me dão força para seguir adiante e ficar ao lado do meu marido.

Da redação
Manter a comunicação é essencial

A esclerose lateral amiotrófica é causada pela morte das células do sistema nervoso que cuidam do movimento das pernas, braços, pulmão, coração e sistema digestivo. Não há cura para a doença, nem causas conhecidas para sua ocorrência. Pessoas que fazem esforço físico, como atletas, correm mais riscos de desenvolvê-la, porque sofrem mais lesões musculares. Em excesso, essas lesões liberam toxinas que causam a morte de células do sistema nervoso. A incidência da doença é de um caso para cada 100 mil pessoas ao ano. Em um estágio avançado, o doente perde a capacidade de falar. A recomendação dos médicos é criar formas alternativas de comunicação para manter a qualidade de vida do paciente. "Há quem se expresse por computadores tocados com a ponta dos pés ou mãos. Mas como os músculos dos olhos são os últimos afetados pela doença, a comunicação pelo piscar de olhos, com a ajuda de tabelas, é a mais indicada", explica o neurologista Acary Bulle Oliveira, da Associação Brasileira de Portadores de Esclerose Lateral Amiotrófica (ABrELA). A associação treina pacientes e familiares sobre métodos alternativos de comunicação.

Drama semelhante deu origem a filme

O filme O Escafandro e a Borboleta (2007) conta a história real do jornalista francês Jean-Dominique Bauby, que depois de sofrer um derrame perdeu todos os movimentos do corpo, exceto os dos olhos. Com a ajuda de uma terapeuta e de uma tabela com o alfabeto, ele ditou, com o olho, o livro que deu origem ao filme.

"Só tenho a agradecer a Deus"

"Eu demorei 3 horas para escrever esta carta, mas foi com amor. Esta enfermidade é cruel, mas não gosto de me preocupar com ela. Gosto de ocupar minha mente (...) Tenho um sonho de fazer uma casa em um lugar plano para ficar melhor para a cadeira de rodas (...) É um desafio, sem condições financeiras, mas vou conseguir. Quando nasceu minha primeira neta, estava com essa doença há 3 anos (...) Pedi a Deus para vê-la caminhar um dia. Hoje ela tem dez anos. Só tenho a agradecer."

Abel Sousa Silva, 50 anos, motorista aposentado, o marido da Lucimar

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